28/04/2016
De forma unânime, competidores brasileiros destacam falta de
distinção para quem vive do esporte e civis; "Sou da Paz" explica que
tenta conter desvio de finalidade
Um dos esportes mais tradicionais das Olimpíadas, presente
desde a primeira edição, o tiro esportivo é uma das esperanças do Brasil para
conquistar medalhas no Rio 2016. Aliás, foi justamente neste esporte que o país
garantiu seu primeiro ouro, com Guilherme Paraense, na Antuérpia, em 1920.
Hoje, atletas de ponta como Felipe Wu, Cássio Rippel e Júlio Almeida, campeões
em suas modalidades no Pan-Americano de 2015, vão representar o time brasileiro
nos Jogos, em agosto. No evento-teste realizado na última semana, no entanto,
os competidores desabafaram contra o que consideram um dos maiores problemas
para o surgimento de novos talentos e uma maior competitividade deles próprios
no cenário mundial: o estatuto do desarmamento.
Criada em 2003, a lei restringe o comércio de armas de fogo
e munições com a prerrogativa de diminuir a violência e o número de homicídios
no país. Sem entrar na discussão da eficácia ou não do estatuto para a
diminuição desses índices, os atletas brasileiros reclamam de uma falta de
distinção entre eles e o cidadão comum que busca ter uma arma para defesa
pessoal. Para os competidores, deveria haver uma lei específica que os ajudasse
na aquisição de equipamentos de uma forma menos burocrática e mais barata, já
que boa parte deles é importada. Segundo eles, o tipo de armas que usam são
muito diferentes do que os bandidos buscam. Sendo assim, não haveria uma
justificativa de que poderia "cair em mãos erradas".
- Atrapalha muito, porque ele (estatuto do desarmamento) não
faz distinção. Ele foi feito para tentar evitar um problema de criminalidade,
mas não há distinção para o esporte ali. Então acaba atrapalhando demais. Você
acaba sendo tratado como se fosse um cara querendo comprar uma arma normal.
Vamos ficar só nas armas olímpicas, que não são usadas no dia a dia. Uma
pistola livre, que é uma arma que se carrega um a um, e é gigante a arma. Você
não vai andar com uma arma dessas na rua, mesmo que você queira. E a lei não
permite também que você ande com ela carregada. Essa é a diferença do atleta
desportivo. Quando você tira um porte para andar com ela carregada, o atleta
desportivo, mesmo a documentação em dia, não pode andar com a arma carregada.
Se for pego com arma carregada está infringindo a lei. Então essa arma vai
separada da munição sempre. Ninguém vai querer fazer um assalto com uma arma de
competição. Não tem como. A 22 até poderia. Mas, se você tem dinheiro para
comprar uma arma com 5 tiros, você vai comprar uma 9 milímetros com 15 tiros.
Ou uma 38, que vai ter uma efetividade muito maior para fazer um assalto do que
uma arma de competição - explicou Júlio Almeida.
Nas competições de tiro esportivo há pistolas de ar, pistola
de tiro rápido, carabinas e espingardas de tiro ao prato. Nas de ar, a munição
é o "chumbinho". As carabinas disparam apenas um tiro por vez e as
espingardas suportam, no máximo, duas munições, além de ambas serem pesadas (de
5 a 8,5kg). A única que - na opinião dos atletas - poderia ser alvo de bandidos
para praticarem crimes seria a de calibre 22, usada no tiro rápido. Porém, a
capacidade dela é de cinco munições, enquanto pistolas comuns, de 9mm, podem
receber até 15 balas. Essa diferença entre armamentos esportivos e de defesa pessoal
é o que move os competidores a pedirem uma flexibilidade maior na aquisição do
equipamento.
- O estatuto do desarmamento acabou não fazendo diferença
entre uma arma de competição e uma arma de fogo (para defesa pessoal). Há uma
conversa entre a Confederação Brasileira de Tiro Esportivo e o Exército
Brasileiro, que é quem controla a entrada de armamento no país, para modificar
essa legislação. Hoje já é visto com outros olhos o atirador de provas
olímpicas e quem quer comprar a arma para defesa pessoal ou mesmo desportiva
mas para o tiro prático e não o olímpico. Mas o estatuto nos atrapalha. Eu não
tive problemas por ser do Exército, então facilita bastante o trâmite e o ir e
vir. Mas, para os amigos que são civis, eles enfrentam grandes problemas com
isso - afirmou Leonardo Moreira, competidor na carabina e comentarista do
SporTV.
Para poder ser registrado como atleta profissional de tiro
esportivo, o cidadão precisa procurar uma das portarias do Exército específica
para esta modalidade, que comporta ainda caçadores e colecionadores. Apesar
dessa atribuição, a lei continua sendo regida pelo estatuto do desarmamento. A
portaria serve apenas para centralizar a organização e o cadastro dos
registros, além da fiscalização e reavaliação para a concessão do porte, que
deve acontecer anualmente.
Entenda o que é preciso para ser um atleta de tiro
Como o comércio nacional é bastante reduzido, os produtos -
tanto armas quanto as munições - não costumam ser de alta qualidade e forçam os
competidores de ponta a buscarem opções no mercado internacional. Daí, há um
problema com impostos de importação, depende da ida dos atletas ao exterior -
já que para importar esse tipo de equipamento, a operação pode levar até dois
anos - além de exigir o CII (Certificado de Importação Internacional), registro
diferente do CR (Certificado de Registro), que é feito junto ao Exército
nacional e exigido portar e competir com armas de fogo.
- A dificuldade maior é de importar equipamento. É muito
caro, e a munição também é importada. A gente não usa nada nacional. É bem
complicado. A gente aproveita as Copas (do Mundo de Tiro Esportivo) para
renovar o equipamento. São pecinhas. A arma já é importada. Vem para o Brasil,
a gente faz a legalização, fica tudo certo. Mas as peças são caras. Para
importar num processo normal, leva muito tempo. A gente aproveita nas Copas e
compra as peças. Para fazer a importação normal da arma, leva muito tempo, dois
anos, dois anos e meio - afirma Rosane Budag, que compete na carabina.
Além de tornar o esporte mais caro, o estatuto do
desarmamento, conjuntamente ao estatuto da criança e do adolescente, impede que
menores de 18 anos possam empunhar uma arma de fogo. Assim, os atletas
brasileiros se veem em grande desvantagem para os competidores internacionais,
que começam no esporte desde crianças ou muito novos. Para que um menor de
idade possa atirar, os responsáveis precisam fazer uma requisição judicial e,
muitas vezes, esse pedido é negado por juízes, ainda que a intenção esteja
relacionada com práticas esportivas.
- Em vez de falar armas, deveríamos falar em equipamento,
que é o mais correto. Em outros países, se começa na mais tenra idade. Aqui, é
18 anos a idade mínima para um atleta poder desempenhar sua atividade de tiro,
e para adquirir a arma é com 25 anos. Isso é idade para estar no pódio de
competições internacionais. Existem atletas com idade inferior que praticam o
tiro esportivo, mas com liminares na justiça, algo muito demorado - explicou
Durval Barlen, presidente da CBTE.
Especialista no assunto e ferrenho crítico do estatuto do
desarmamento, Bene Barbosa, presidente do Movimento Viva Brasil e autor do
livro "Mentiram para mim sobre o desarmamento" afirma que o atual
cenário desmotiva o surgimento de novos atletas no país, algo que não acontece
em outros esportes. Para ele, em tese, o atleta de tiro até tem uma legislação
diferente, já que ele responde a uma portaria específica do Exército. No
entanto, essa mesma legislação acompanha o que vale para os civis - o estatuto
do desarmamento - e cria uma série de dificuldades não só para quem já pratica
mas para o surgimento de atiradores esportivos.
- O ideal é que a legislação para o colecionador e para o
tiro esportivo fosse realmente diferenciada de quem tem uma arma para sua
defesa. Que houvesse uma isenção de impostos, se desse estrutura para o atleta
poder ter facilidade maior de fazer o seu esporte. O tiro esportivo não tem a
peneira natural do esporte. Vamos pegar o futebol como exemplo: qualquer bairro
tem um campo, uma escolinha, milhões de jovens praticam informalmente até
chegar ao fim da peneira, que é quando você vê aqueles que vão se destacar e
virar craques. O tiro já começa restrito, muito pequeno. A chance de você ter
um atleta de ponta é mínima por conta disso - afirma Bene.
A discussão dos atletas de tiro se restringe ao âmbito
esportivo e não questiona a dificuldade em todo trâmite até poderem portar uma
arma e competir. Emerson Duarte, que disputa as provas de pistola de 25m,
explica que a ideia era, além dos incentivos fiscais, fazer com que jovens se
iniciassem no tiro com pistolas de ar, por exemplo, que é uma das modalidades
do esporte.
- Essa legislação, que rege os atiradores, colecionadores e
caçadores é diferente, mas continua muito restritiva. Ela poderia ser um pouco
mais incentivadora, principalmente para os jovens, adolescentes... Por que eles
não podem iniciar numa pistola de ar, por exemplo, num estande, supervisionado?
Eu nunca soube de um acidente num estande de tiro, desde que eu comecei a
atirar. Eu acho que tem que separar bem o tiro esportivo do tiro de defesa.
Quando desvincular a pistola que eu tenho, que é esportiva, e não de defesa...
a população tem que entender essa diferença, além de aperfeiçoar mais essa
portaria do exército, que melhorou, mas ainda pode ajudar o desenvolvimento do
esporte - pediu Emerson.
o que é preciso para ser um atleta de tiro esportivo?
A primeira coisa que uma pessoa que deseja competir
esportivamente no tiro é obter um certificado registro para poder usar um
equipamento controlado pelo Exército - é o caso das armas de fogo. Para
conseguir um CR é preciso:
- Identificação através de documento com foto e comprovantes
de residência e acervo;
- Idoneidade: certidões negativas de antecedentes criminais
fornecidos por Justiça Federal, Estadual, Militar e Eleitoral;
- Comprovação de capacidade técnica, atestado de aptidão
psicológica e autorização judicial;
- Assinatura em termo de compromisso, ciência e
responsabilidade, além de uma declaração de filiação a uma entidade de tiro
desportivo ou de caça;
- Pagamento de taxa.
A capacidade técnica é comprovada por um instrutor de tiro
registrado no Exército ou pela Polícia Federal e deve ser comprovada
anualmente. A aptidão psicológica é expedida por um psicólogo registrado no
respectivo conselho de classe e é preciso ser renovada a cada três anos.
Além disso, há uma restrição para o tipo de armas que os
atletas podem comprar. Sendo assim, é proibido que os esportistas comprem os
seguintes equipamentos (que não condizem com nenhuma prática esportiva):
– Armas de calibre 9x19 mm.
– Armas de calibre 5,56 mm NATO (5,56x45 mm, .223
Remington.)
– Armas de calibre 5,7x28mm.
– Armas curtas semiautomáticas de calibre superior ao .454.
– Armas curtas de repetição de calibre superior ao .500.
– Armas longas raiadas de calibre superior ao .458.
– Espingardas de calibre superior a 12.
– Armas automáticas de qualquer tipo.
– Armas longas semiautomáticas de calibre de uso restrito,
com exceção das carabinas semiautomáticas nos calibres .30 Carbine (7,62 x
33mm) e .40 S&W.
"sou da paz" diz que se preocupa com desvio de
finalidade
Instituto responsável pela criação do Estatuto do
Desarmamento, o "Sou da Paz" concordou com reclamação dos atletas em
termos de um excesso de burocracia na questão da compra de armamento e
munições. No entanto, Bruno Langeani, coordenador da área de Sistemas de
Justiça e Segurança Pública do Instituto Sou da Paz, afirma que o problema
parte mais de uma falta de pessoal do Exército, que cuida desta portaria
referente ao competidores, do que da lei em si.
- Nossa avaliação é que grande parte das reclamações não são
tanto pela legislação em si, e mais por conta de falta de pessoal do Exército
(instituição responsável pelos atiradores) para processar os pedidos no tempo
adequado. O Sou da Paz tem destacado que é importante diferenciar as
necessidades destes atletas competidores (para as quais concordamos com
facilidades na compra de armas e munições) da categoria 'Atirador' do Exército.
Isso porque muitas pessoas buscaram na categoria de atirador uma modalidade de
obtenção de arma com maior facilidade. Assim, o registro de atirador no
Exército, que em 2003 teve 123 novos registros, cresceu exponencialmente,
passando para 73 mil em 2014. Diversos destes, segundo relatos do próprio
Exército, não frequentam estande, nunca se inscrevem para competições, etc -
disse, por e-mail, Bruno Langeani.
Para o Instituto, a preocupação maior é que, em caso de uma
flexibilização maior para os competidores, uma parte da população, mal
intencionada, poderia se aproveitar desta brecha para comprar armamentos e
munições de forma legal.
- Este desvio de finalidade preocupa, pois gera desvios que
comprometem a segurança. Neste sentido, também é papel das federações ajudar a
separar os atletas que competem e são ranqueados dos demais que buscaram o
cadastro apenas para acessar uma arma com mais facilidade. Assim, em resumo,
acreditamos que é perfeitamente possível conciliar um controle que seja
preocupado com a segurança do país com o incentivo a este importante esporte,
que é motivo de orgulho e rende medalhas há tanto tempo para o Brasil -
escreveu.
Por: globoesporte.globo.com
Postado por Thom Erik Syrdahl
Postado por Thom Erik Syrdahl
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